Virgínia Ferreira
Psicanalista
e professora da Faculdade de Medicina de Petrópolis (FMP/Fase)
Hoje, falarei sobre a vida, porém, a partir de uma perspectiva árida,
mas muito real. O que é a vida senão o enfrentamento de uma série de perdas
diárias? Perdemos a beleza do corpo, que está fadado à decadência e à falência;
perdemos o emprego, alguns sonhos; perdemos pessoas que nos abandonam
propositadamente, outras que nos abandonam nada intencionalmente, porque
morreram; perdemos o carro porque roubaram, e a segurança para a violência.
Cada dia que vivemos é menos um dia que, no futuro, viveremos. Que
sufoco!!! Fato é que há sempre uma perda contra nossa vontade. Sempre. Cada
perda exige um luto. Via de regra, as pessoas perdem e seguem driblando a dor
da perda, como se ela significasse pouco. Perdeu a beleza do corpo, recorre ao
bisturi; perde o emprego, diz que já era hora de sair e arrumar outro; perde um
sonho, constrói outro; perdem pessoas que as abandonam propositadamente, diz que
há males que vêm para o bem; perdeu o carro num roubo, dá graças a Deus por ter
ficado viva, e assim se vai vivendo.
Mas, quando diante da perda por morte, o drible fica difícil ou até
mesmo impossível. Se a pessoa que morreu era idosa ou estava muito doente, o
drible é difícil, mas possível. Ele se traduz através da seguinte afirmativa:
descansou. Se a pessoa que morreu era jovem, a dor e o inconformismo tomam
conta. O drible só acontece com o tempo. Mas, diante das tragédias, quando dezenas
de pessoas morrem juntas como no caso do desastre com a Chapecoense, a dor é
insuportável, a comoção é grande.
Parece que é diante de uma tragédia que as pessoas se confrontam com a
morte. Mas, quando digo tragédia, estou me referindo às tragédias não
anunciadas. Isso porque as anunciadas não causam comoção. Por exemplo: quantas
crianças morrem diariamente na África de fome? Quantos civis morrem vítimas dos
confrontos no Oriente Médio? Quantas pessoas morrem em chacinas no Brasil?
Tenho a impressão que as tragédias anunciadas são banalizadas, como se a
perda de uma vida na tragédia anunciada tivesse menos valor do que a perda numa
não anunciada. Não. A vida humana tem igual valor. Gostaria de ressaltar que
respeito e me solidarizo com todas as famílias das pessoas que morreram no
acidente aéreo. Bem, independentemente da perda, há sempre um luto que deve ser
vivido. Inaugurar um luto e vivê-lo não significa que se deve mergulhar na dor
e se fechar para a vida. Significa se permitir sentir a dor.
Toda perda traz em si sofrimento, dor, desconforto, e esses sentimentos
precisam ser vividos. É difícil, mas necessário. Todo e qualquer sentimento
precisa ser vivido. A repressão dos sentimentos antecipa a própria morte
através das doenças físicas ou psíquicas ou pode representar a própria morte, a
existencial, aquela que faz da pessoa uma morta viva.
Muitas vezes, quando a vida de um ser muito amado é interrompida pela
morte, somos apresentados a uma dor da qual nunca mais conseguimos nos livrar.
A partir dessa dor, que nos acompanhará até a nossa própria morte, temos duas
saídas: ou a partir da dor nos alegramos e nos orgulhamos por ter tido o
privilégio de ter amado ou sucumbimos à dor.
Finalizo este texto dizendo que quem foi apresentado ao amor, um
dia, será apresentado à dor: a morte. Mas, se a vida é como uma moeda em
constante rodopio, em constante movimento, a face do amor dará movimento à vida
cada vez que a face da dor se apresentar.