Paulo K. de Sá
Coordenador da Faculdade de Medicina de
Petrópolis (FMP)
A violência diária faz muitas
vítimas: umas feridas por armamentos, outras sufocadas pelo medo, nas ruas e em
casa. As causas da escalada brutal nos números de assaltos e tiroteios são
várias. Elas vão da expansão do tráfico de drogas à entrada descontrolada de
armas no país, passando pela crise econômica e a falta de autoridade dos que
deveriam dar bons exemplos.
Se antes eram os grandes
hospitais públicos que tinham que se adaptar para receber os baleados na guerra
urbana, hoje são os postos de saúde que começam a ter que encarar a realidade,
treinando profissionais para lidar com ferimentos por balas de fuzis. A pressão
é grande na missão de salvar vidas em ambientes que não foram equipados para a
batalha.
Com a triste experiência no
currículo, o Rio virou referência para médicos estrangeiros que querem aprender
com a rotina de uma guerra. A cidade também foi escolhida pelo Comitê
Internacional da Cruz Vermelha para receber um curso onde professores
municipais são orientados a se proteger melhor dos confrontos, que assustam e
vitimam crianças e jovens. Com escolas fechadas, a educação sofre.
Porém, quando olhamos um sinal
e/ou sintoma de alguma perturbação no indivíduo, não olhamos apenas para esse
sinal, mas para o organismo como um todo, porque o adoecimento é por inteiro e
não só uma parte. Assim podemos dizer que o Rio de Janeiro está com uma grande
ferida na perna, mas os demais estados apresentam também graves perturbações
como a violência no campo, o desmatamento de florestas, a agressiva atuação dos
especuladores na Amazônia. Não é apenas um caso de falência local, mas de um
modelo de sociedade pautado na exploração da força produtiva e da concentração
de renda, e isso afeta o Brasil inteiro. O Rio, cidade, como sempre, é a
vitrine do processo nacional e está purgando toda essa sujeira e contradição.
O currículo do Rio é a
expressão do currículo nacional. É como se disséssemos que o problema das
pernas inchadas de alguém é só das pernas, quando na verdade o fenômeno de
instabilidade circulatória é do organismo inteiro. Apenas ficou mais evidente
nas pernas.
Além de ter que fugir das
balas perdidas, o cidadão convive com o noticiário sobre a violência, de manhã
à noite, nos noticiários da TV e na internet, em tempo real. Alguns aplicativos
mapeiam onde há tiroteios e montam ranking de assaltos. Há também os boatos e
as falsas notícias nas redes sociais, que aumentam a tensão e sufocam as
tentativas de uma cultura de paz.
Como o Rio é vitrine, não
mostram os índios correndo de tiroteios no Norte; os líderes de
movimentos sociais sendo perseguidos e mortos por empreiteiros no
Centro-Oeste; assim como os imigrantes do Sul sofrendo por força
da deterioração climática e da ação gananciosa do ser humano. São balas tão
perdidas que nem citamos, não dá manchete e afetam diretamente aos exploradores
do poder.
Estressados e inseguros, os
vizinhos das zonas de conflitos adoecem, física e mentalmente. Sem falar
naqueles que sobrevivem aos conflitos, mutilados e com traumas. A população
vive no susto, trabalhando de olho na guerra e evitando o lazer noturno. Perdem
a economia e o turismo, com os arranhões na imagem do Brasil. Mas a vida nos
chama e o tempo ensina que não devemos nos acostumar com derrotas.
Quem deve virar o jogo de
uma população que, embora sofrida, insiste em eleger governantes duvidosos como
nas últimas eleições? Alguém se intitula superior e acima do bem e do mal para
ser esse tal justiceiro? Ou vamos apostar no velho modelo de direita de prender
e ameaçar quem perturbar a ordem como se isso fosse somente cometido por mero
capricho de um ou outro bandido?
Ao olharmos o caos mundial,
fica evidente que onde as forças de organização foram sempre frágeis se
instalam os aproveitadores e os processos daninhos de corrupção e violência.
Não devemos entrar na fila
daqueles que querem apenas olhar para fatos como num cinema, sem antes observar
de cima tudo que está em curso. Apenas berrar que o Rio está entregue não
significa nada além de assustar as pessoas e criar as condições adequadas para
a instalação dos “sistemas de segurança” miliciados. Já vimos esse filme. Só
que agora o choque de ordem necessário não é mais na favela e, sim, na
sociedade e no Congresso.