terça-feira, 29 de agosto de 2017

Todos sob pressão

Paulo K. de Sá
Coordenador da Faculdade de Medicina de Petrópolis (FMP) 

 
A violência diária faz muitas vítimas: umas feridas por armamentos, outras sufocadas pelo medo, nas ruas e em casa. As causas da escalada brutal nos números de assaltos e tiroteios são várias. Elas vão da expansão do tráfico de drogas à entrada descontrolada de armas no país, passando pela crise econômica e a falta de autoridade dos que deveriam dar bons exemplos.
Se antes eram os grandes hospitais públicos que tinham que se adaptar para receber os baleados na guerra urbana, hoje são os postos de saúde que começam a ter que encarar a realidade, treinando profissionais para lidar com ferimentos por balas de fuzis. A pressão é grande na missão de salvar vidas em ambientes que não foram equipados para a batalha.
 
Com a triste experiência no currículo, o Rio virou referência para médicos estrangeiros que querem aprender com a rotina de uma guerra. A cidade também foi escolhida pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha para receber um curso onde professores municipais são orientados a se proteger melhor dos confrontos, que assustam e vitimam crianças e jovens. Com escolas fechadas, a educação sofre.
Porém, quando olhamos um sinal e/ou sintoma de alguma perturbação no indivíduo, não olhamos apenas para esse sinal, mas para o organismo como um todo, porque o adoecimento é por inteiro e não só uma parte. Assim podemos dizer que o Rio de Janeiro está com uma grande ferida na perna, mas os demais estados apresentam também graves perturbações como a violência no campo, o desmatamento de florestas, a agressiva atuação dos especuladores na Amazônia. Não é apenas um caso de falência local, mas de um modelo de sociedade pautado na exploração da força produtiva e da concentração de renda, e isso afeta o Brasil inteiro. O Rio, cidade, como sempre, é a vitrine do processo nacional e está purgando toda essa sujeira e contradição.
 
O currículo do Rio é a expressão do currículo nacional. É como se disséssemos que o problema das pernas inchadas de alguém é só das pernas, quando na verdade o fenômeno de instabilidade circulatória é do organismo inteiro. Apenas ficou mais evidente nas pernas.
Além de ter que fugir das balas perdidas, o cidadão convive com o noticiário sobre a violência, de manhã à noite, nos noticiários da TV e na internet, em tempo real. Alguns aplicativos mapeiam onde há tiroteios e montam ranking de assaltos. Há também os boatos e as falsas notícias nas redes sociais, que aumentam a tensão e sufocam as tentativas de uma cultura de paz.
 
Como o Rio é vitrine, não mostram os índios correndo de tiroteios no Norte; os líderes de movimentos sociais sendo perseguidos e mortos por empreiteiros no Centro-Oeste; assim como os imigrantes do Sul sofrendo por força da deterioração climática e da ação gananciosa do ser humano. São balas tão perdidas que nem citamos, não dá manchete e afetam diretamente aos exploradores do poder.
Estressados e inseguros, os vizinhos das zonas de conflitos adoecem, física e mentalmente. Sem falar naqueles que sobrevivem aos conflitos, mutilados e com traumas. A população vive no susto, trabalhando de olho na guerra e evitando o lazer noturno. Perdem a economia e o turismo, com os arranhões na imagem do Brasil. Mas a vida nos chama e o tempo ensina que não devemos nos acostumar com derrotas.
 
Quem deve virar o jogo de uma população que, embora sofrida, insiste em eleger governantes duvidosos como nas últimas eleições? Alguém se intitula superior e acima do bem e do mal para ser esse tal justiceiro? Ou vamos apostar no velho modelo de direita de prender e ameaçar quem perturbar a ordem como se isso fosse somente cometido por mero capricho de um ou outro bandido?
Ao olharmos o caos mundial, fica evidente que onde as forças de organização foram sempre frágeis se instalam os aproveitadores e os processos daninhos de corrupção e violência.
Não devemos entrar na fila daqueles que querem apenas olhar para fatos como num cinema, sem antes observar de cima tudo que está em curso. Apenas berrar que o Rio está entregue não significa nada além de assustar as pessoas e criar as condições adequadas para a instalação dos “sistemas de segurança” miliciados. Já vimos esse filme. Só que agora o choque de ordem necessário não é mais na favela e, sim, na sociedade e no Congresso.