sexta-feira, 30 de junho de 2017

O alerta que vem antes da automutilação


Virgínia Ferreira
Psicanalista e coordenadora da Pós-graduação em Psicologia Clínica com Ênfase nas Perspectivas Breves da FMP/Fase

Não é fácil discutir sobre alguns temas, e um deles é automutilação. Definir o problema não é difícil: é qualquer comportamento intencional, consciente ou inconsciente, envolvendo agressão direta ao próprio corpo sem intenção consciente de suicídio. Entretanto, saber definir não é o suficiente, é o passo inicial. Precisamos buscar e discutir algumas questões: 1 – Quais são as causas da automutilação? 2 – Será que existe apenas uma ou um conjunto de causas? 3 – Será que o que leva um sujeito a se automutilar é o mesmo que leva o outro a fazer isso?

São muitas as perguntas e precárias as respostas. Os atos de automutilação, via de regra, têm como intenção o alívio de dores emocionais e, em grande parte dos casos, estão de alguma maneira associados ao Transtorno de Personalidade Borderline. A automutilação também pode ter como causa o alívio do sentimento de culpa, derivado da noção de pecado e purificação, oriundo das crenças religiosas. Ela pode vir de uma dinâmica familiar desequilibrada, na qual a criança ou o adolescente não se sente protegido e seguro, não conseguindo aprender nesse núcleo primário, a entender, a viver e a expressar seus sentimentos.

A automutilação pode estar associada aos valores culturais (consumismo, imediatismo e individualismo), que levam as pessoas a se distanciarem de si mesmas e das demais, a consumir e a querer tudo para ontem. As pessoas se relacionam com as outras e com o mundo através da tecnologia. Elas se sentem acompanhadas por simplesmente estarem com seus celulares. O “tête-à-tête” se tornou “démodé”. As relações são mediadas pela tecnologia e cada um está encerrado na própria tribo.

Tudo isso leva as pessoas a atitudes e comportamentos não reflexivos, a se movimentar na direção que a moda dita. Distantes de si mesmas e sem saber para onde estão indo, se movimentando como que num estado de hipnose, no qual seguem apenas os comandos de outra pessoa, assim vão. Porém, como todo aquele que é hipnotizado o é apenas por alguns minutos ou horas e depois acorda, essas pessoas também, num dado momento, serão despertadas pela realidade, sem saber quem são, o que querem, para onde estão indo e o que construíram durante esse tempo.

Nesse despertar súbito, a realidade não é gentil, a pessoa se sente perdida, insegura e indigna ou desconhecedora de como buscar o bem-estar e contentamento. Aí o que resta é a automutilação. Ela também pode se apresentar como uma forma de chamar a atenção, um pedido de socorro ou de visibilidade. É um sintoma psíquico que pode se manifestar por diferentes causas e momentos. Tudo o que diz respeito ao aparato psíquico (a mente) ainda se encontra obscuro e é preciso receber luz. A mente humana é uma esfinge. Ou a deciframos ou somos engolidos por ela.

Isso não quer dizer que inexistam teorias e práticas científicas que possam ajudar as pessoas a sair do sofrimento psíquico que, no caso da automutilação, se manifesta no corpo – em atos contra a integridade física e que provocam dor. É nítido que essa dor é mais suportável que a psíquica e, ainda que, ao deslocar a dor psíquica para o corpo, traz certo alívio. Sempre que alguém apresentar comportamento diferente do habitual, que implique em afastamento do social, imerso em tristeza “infundada”, com descaso ou desinteresse por atividades que davam prazer, e se machucar com frequência, deve procurar ajuda. É importante recorrer a um psicólogo, a um psicanalista ou a um psiquiatra, a fim de entender e tratar o que está acontecendo e não tentar se esconder atrás de cansaço, tensão e estresse, entre outras justificativas.

Todo sintoma psíquico, via de regra, aparece de forma singela e evolui lentamente, porém, de forma progressiva. Desta forma, por um lado, se tem o sintoma psíquico evoluindo devagar e sempre e, por outro lado, a pessoa tentando escondê-lo e justificá-lo fora da esfera mental. Quando se dá conta, ou não pode mais tentar se esconder atrás de justificativas, o sintoma já se expandiu o suficiente para obturar o campo existencial e roubar aquilo que o sujeito tem de precioso: se sentir bem dentro da própria pele.

Quando nos sentimos desconfortáveis com um sapato, paramos e o substituímos, ou colocamos esparadrapo, damos um jeito, mas quando nos sentimos desconfortáveis dentro de nossa própria pele, por que custamos tanto a procurar ajuda? Se nós podemos nos livrar de um par de sapatos que nos causa desconforto, não podemos nos livrar de nós mesmos quando não estamos bem. A única saída é enfrentar a dificuldade, buscando ajuda profissional, e enfrentar a nós mesmos diante do outro. Ao responder a pergunta socrática “conhece-te a ti mesmo?”, a resposta logo aparece: “não.” Esse é o ponto de partida. Se não me conheço, chegou o momento de ser apresentado a nós mesmos.

 

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Departamento de Comunicação Faculdade Arthur Sá Earp Neto/Faculdade de Medicina de Petrópolis