Virgínia Ferreira
Psicanalista
e coordenadora da Pós-graduação em Psicologia Clínica com Ênfase nas
Perspectivas Breves da FMP/Fase
Não é fácil
discutir sobre alguns temas, e um deles é automutilação. Definir o problema não
é difícil: é qualquer comportamento intencional, consciente ou
inconsciente, envolvendo agressão direta ao próprio corpo sem intenção
consciente de suicídio. Entretanto, saber definir não é o suficiente, é o
passo inicial. Precisamos buscar e discutir algumas questões: 1 – Quais são as
causas da automutilação? 2 – Será que existe apenas uma ou um conjunto de
causas? 3 – Será que o que leva um sujeito a se automutilar é o mesmo que leva
o outro a fazer isso?
São muitas as
perguntas e precárias as respostas. Os atos de automutilação, via de regra, têm
como intenção o alívio de dores emocionais e, em grande parte dos casos, estão
de alguma maneira associados ao Transtorno de Personalidade Borderline. A
automutilação também pode ter como causa o alívio do sentimento de culpa,
derivado da noção de pecado e purificação, oriundo das crenças religiosas. Ela
pode vir de uma dinâmica familiar desequilibrada, na qual a criança ou o
adolescente não se sente protegido e seguro, não conseguindo aprender nesse
núcleo primário, a entender, a viver e a expressar seus sentimentos.
A automutilação
pode estar associada aos valores culturais (consumismo, imediatismo e
individualismo), que levam as pessoas a se distanciarem de si mesmas e das
demais, a consumir e a querer tudo para ontem. As pessoas se relacionam com as
outras e com o mundo através da tecnologia. Elas se sentem acompanhadas por
simplesmente estarem com seus celulares. O “tête-à-tête” se tornou “démodé”. As
relações são mediadas pela tecnologia e cada um está encerrado na própria
tribo.
Tudo isso leva
as pessoas a atitudes e comportamentos não reflexivos, a se movimentar na
direção que a moda dita. Distantes de si mesmas e sem saber para onde estão
indo, se movimentando como que num estado de hipnose, no qual seguem apenas os
comandos de outra pessoa, assim vão. Porém, como todo aquele que é hipnotizado
o é apenas por alguns minutos ou horas e depois acorda, essas pessoas também,
num dado momento, serão despertadas pela realidade, sem saber quem são, o que
querem, para onde estão indo e o que construíram durante esse tempo.
Nesse despertar
súbito, a realidade não é gentil, a pessoa se sente perdida, insegura e indigna
ou desconhecedora de como buscar o bem-estar e contentamento. Aí o que resta é
a automutilação. Ela também pode se apresentar como uma forma de chamar a atenção,
um pedido de socorro ou de visibilidade. É um sintoma psíquico que pode se
manifestar por diferentes causas e momentos. Tudo o que diz respeito ao aparato
psíquico (a mente) ainda se encontra obscuro e é preciso receber luz. A mente
humana é uma esfinge. Ou a deciframos ou somos engolidos por ela.
Isso não quer
dizer que inexistam teorias e práticas científicas que possam ajudar as pessoas
a sair do sofrimento psíquico que, no caso da automutilação, se manifesta no
corpo – em atos contra a integridade física e que provocam dor. É nítido que
essa dor é mais suportável que a psíquica e, ainda que, ao deslocar a dor
psíquica para o corpo, traz certo alívio. Sempre que alguém apresentar
comportamento diferente do habitual, que implique em afastamento do social,
imerso em tristeza “infundada”, com descaso ou desinteresse por atividades que
davam prazer, e se machucar com frequência, deve procurar ajuda. É importante
recorrer a um psicólogo, a um psicanalista ou a um psiquiatra, a fim de
entender e tratar o que está acontecendo e não tentar se esconder atrás de
cansaço, tensão e estresse, entre outras justificativas.
Todo sintoma
psíquico, via de regra, aparece de forma singela e evolui lentamente, porém, de
forma progressiva. Desta forma, por um lado, se tem o sintoma psíquico
evoluindo devagar e sempre e, por outro lado, a pessoa tentando escondê-lo e
justificá-lo fora da esfera mental. Quando se dá conta, ou não pode mais tentar
se esconder atrás de justificativas, o sintoma já se expandiu o suficiente para
obturar o campo existencial e roubar aquilo que o sujeito tem de precioso: se
sentir bem dentro da própria pele.
Quando nos
sentimos desconfortáveis com um sapato, paramos e o substituímos, ou colocamos
esparadrapo, damos um jeito, mas quando nos sentimos desconfortáveis dentro de
nossa própria pele, por que custamos tanto a procurar ajuda? Se nós podemos nos
livrar de um par de sapatos que nos causa desconforto, não podemos nos livrar
de nós mesmos quando não estamos bem. A única saída é enfrentar a dificuldade,
buscando ajuda profissional, e enfrentar a nós mesmos diante do outro. Ao
responder a pergunta socrática “conhece-te a ti mesmo?”, a resposta logo
aparece: “não.” Esse é o ponto de partida. Se não me conheço, chegou o momento
de ser apresentado a nós mesmos.
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Departamento de Comunicação Faculdade Arthur Sá Earp Neto/Faculdade de Medicina de Petrópolis