terça-feira, 4 de novembro de 2008

PESQUISADORES CONSEGUEM APAGAR SELETIVAMENTE MEMÓRIA DE ROEDORES

por Reinaldo José Lopes, no G1 22/10/2008

Camundongos transgênicos não sofrem desilusões amorosas nem se reclinam no divã do psicanalista, mas alguns desses bichos passaram por uma experiência digna do filme cult "Brilho eterno de uma mente sem lembranças": sua memória foi seletivamente apagada. O experimento, conduzido por uma equipe sino-americana, levanta a intrigante possibilidade de realizar o mesmo truque para "deletar" traumas ou memórias indesejáveis - embora ainda haja um abismo entre o que foi feito com os roedores e as lembranças naturais de seres humanos.

No trabalho, coordenado por Joe Z. Tsien, da Faculdade Médica da Geórgia (EUA), e publicado na revista científica "Neuron", os pesquisadores desenvolveram uma forma complexa e inovadora de manipular a proteína alfa-CaMKII. Trata-se de uma peça essencial da formação das memórias no cérebro. "As moléculas de CaMKII são uma forma química de memória", explica o neurobiólogo Martín Pablo Cammarota, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).

Um dos problemas enfrentados na passagem de mensagens entre os neurônios (células nervosas) é como lidar com a passagem de íons (átomos eletricamente carregados) do elemento químico cálcio. Ao mesmo tempo em que é necessário para a comunicação entre neurônios, o cálcio também é tóxico para a célula. Resolver o dilema é um dos papéis da alfa-CaMKII (cuja sigla corresponde ao complicado nome "quinase II dependente de cálcio calmodulina"). "Os aumentos de cálcio são sempre transientes [ou seja, passageiros], algo muito rápido e localizado", diz Cammarota. "Então, é preciso algum mecanismo para que a célula ´lembre´ que esse aumento ocorreu."

O cérebro faz isso por meio de uma modificação química envolvendo a alfa-CaMKII - modificação que pode ser "reencenada" mesmo depois do evento que ocasionou o aumento de cálcio original. Com isso, surge uma base química para a memória - base que foi manipulada por Tsien e seus colegas nos EUA e na China.

Nascidos para esquecer

O problema de mexer com a alfa-CaMKII, porém, é que a proteína faz parte de uma família de moléculas muito parecidas com ela - tão semelhantes, de fato, que mexer em uma equivaleria a mexer em todas. O que os pesquisadores fizeram, portanto, foi criar camundongos transgênicos que carregavam uma versão especialmente projetada da alfa-CaMKII, feita para interagir apenas com um inibidor químico (uma espécie de antídoto da proteína) desenhado por eles.

"É uma brincadeira muito interessante o que eles fizeram, e essa é a grande novidade desse trabalho. O problema é saber como isso se reflete no modelo. É como se eu dissesse que quero saber como é namorar uma mulher bonita, mas, para isso, vou namorar uma mulher feia", compara o pesquisador da PUC-RS.

De qualquer maneira, os camundongos transgênicos mostraram uma produção 36% do que o normal da alfa-CaMKII modificada, e uma atividade 200% da proteína. O resultado, porém, foi que os bichos, em condições normais, eram incapazes de formar boas lembranças - a menos que os pesquisadores injetassem neles o inibidor da alfa-CaMKII. Com o antídoto nas veias, os bichos conseguiam aprender a temer um choquinho nas patas, por exemplo. Mas, quando eles não mais recebiam o inibidor e eram colocados num contexto que normalmente faria com que se lembrassem do trauma, puf! - a memória desaparecia.

O efeito provavelmente é específico para a memória criada com a ajuda do antídoto porque, quando os pesquisadores tentavam recuperá-la uma segunda vez, agora injetando o inibidor novamente nos roedores, eles continuavam desmemoriados.

Natural?

Cammarota elogia o virtuosismo técnico dos criadores dos camundongos desmemoriados, mas explica que há limitações sérias nos resultados. "É claro que isso sugere a possibilidade de apagar seletivamente uma memória, mas é importante lembrar que eles fizeram isso partindo de um sistema anormal, em animais que já tinham dificuldade de aprendizado e memória. Por isso, se você me perguntar se estamos mais perto de fazer isso em humanos graças a esse artigo, eu diria que não."

Tsien e companhia se dizem cientes das dificuldades. "Ninguém deve esperar uma pílula que faça a mesma coisa em pessoas tão logo. Estamos apenas no sopé de uma montanha muito alta", disse ele em comunicado oficial.

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Departamento de Comunicação Faculdade Arthur Sá Earp Neto/Faculdade de Medicina de Petrópolis